terça-feira, 1 de maio de 2012


Primeira intervenção de Katja Bastos – Delegada Nacional da Etnia Cigana - Mesa Redonda “Desigualdades raciais no Rio de Janeiro”

A construção da Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial está baseada em diversos instrumentos, dentre os quais se destacam:
·        A Convenção Internacional sobre Eliminação de todas as formas de Discriminação, que define a discriminação racial como “toda exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como objetivo anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico e social”.
·        O Brasil sem Racismo, um documento elaborado para o programa de governo indicando a implementação de políticas de promoção da igualdade racial nas áreas do trabalho, emprego e renda, cultura e comunicação, educação e saúde, terras de quilombos, mulheres negras, juventude, segurança e relações internacionais.
·        E o Plano de Ação de Durban, produto da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, no qual governos e organizações da sociedade civil, de todas as partes do mundo, foram conclamados a elaborar medidas globais contra o racismo, a discriminação, a intolerância e a xenofobia.
Assim sendo, é de responsabilidade do Governo Federal, do Estadual e do Municipal, observados os limites institucionais do Poder Executivo, desenvolver mecanismos para assegurar a eficácia dos direitos de cidadania plena.
Sabemos que o governo brasileiro já coloca em prática os marcos e princípios políticos de Durban e da Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial. Admite a diversidade nacional, reconhecendo a sociedade brasileira como multicultural, multiracial e pluriétnica, buscando reafirmar ou alterar o posicionamento do Estado brasileiro.
Por conseqüência,  o Governo reconhece, também, a dívida histórica do Estado com os povos ciganos, no que diz respeito à constante violação dos direitos humanos, que se manifesta na existência de estereótipos negativos, preconceitos e nas várias formas de discriminação das minorias ciganas pela população majoritária nacional, sem a efetividade de políticas específicas para descendentes deste grupo.
Gostaríamos de esclarecer um pouco mais a questão dos ciganos.

Nada, mas absolutamente nada, sabemos sobre o número de ciganos nômades, semi-nômades e sedentários atualmente existentes no Brasil, nem sobre sua distribuição geográfica.  Há quem, sem apresentar quaisquer provas, fala até na existência de 800 mil ou 1 milhão de ciganos no Brasil.  No entanto, quaisquer estimativas sobre a população cigana brasileira não passam de meras fantasias.  No Brasil, até hoje, nem o IBGE ou outra instituição de pesquisa demográfica, nem cientista algum tem feito um levantamento da população cigana.

Desde sua chegada na Europa Ocidental, os ciganos têm sido vítimas de políticas anti-ciganas, em todos os países por onde passaram.  “Cigano” virou palavrão; ser “cigano” virou crime, o que em muitos países significava a condenação à morte.  Ainda em pleno Século XX, os nazistas exterminaram cerca de 500.000 ciganos, um holocausto que os historiadores preferem esquecer.

O Brasil talvez seja o único país do mundo no qual um cigano chegou a ser Presidente da República (Juscelino Kubitschek, 1956-60)  Mesmo assim, todas as Constituições Federais sempre ignoraram a existência de ciganos, e no Brasil não existem políticas anti-ciganas ou pró-ciganas, nem leis que tratam especificamente das minorias ciganas.

A defesa dos direitos e interesses das minorias ciganas, no entanto, é bem mais difícil e complexa, porque nas bibliotecas universitários os interessados procurarão em vão uma bibliografia nacional e estrangeira sobre ciganos, ou sobre direitos ciganos.  Os antropólogos, historiadores, geógrafos, juristas e outros, quase sempre ignoraram a existência das minorias ciganas no Brasil.

No Brasil não existe uma legislação especificamente cigana.  No entanto, na Constituição Federal de 1988 existem alguns artigos que, por extensão, dizem respeito também às minorias ciganas.

Direito à não-discriminação:
“Art. 3º.  Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I.                Construir uma sociedade: livre, justa e solidária;
IV.          Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

“Art. 5º.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...
XLII.     A prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.”

Direito à livre locomoção:
“Art. 5º.  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...
XV.       É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.”

Direitos culturais:
“Art. 215.  O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
#1º -   O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório brasileiro.

Art. 216.  Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
1.             As formas de expressão;
2.             Os modos de criar, fazer e viver;
3.             As criações científicas, artísticas e tecnológicas...
#3º -   A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais.”

A Constituição Federal garante, assim, aos ciganos nascidos no Brasil os mesmos direitos dos outros cidadãos, pelo menos em teoria.  Na prática, muitos destes direitos são constantemente violados, o que se manifesta, como já dissemos, na existência de estereótipos negativos, preconceitos e várias formas de discriminação das minorias ciganas pela população majoritária nacional.  Porém, os ciganos, por constituírem minorias étnicas, também têm direitos especiais, citados em vários documentos internacionais, aprovados e promulgados também pelo Governo Brasileiro.  Desnecessário dizer que também estes direitos especiais são constantemente ignorados e violados.

A Declaração Universal dos Direitos dos Povos, de 1976, dedica uma seção ao "Direito à Cultura", na qual afirma: "Art. 13 - Todo povo tem o direito de falar sua língua, de preservar e desenvolver sua cultura, contribuindo assim para o enriquecimento da cultura da humanidade. Art. 14 - Todo povo tem direito às suas riquezas artísticas, históricas e culturais.  Art. 15 - Todo povo tem direito a que se não lhe imponha uma cultura estrangeira”.

Também a Conferência sobre a Segurança e Cooperação na Europa, em 1990, assim se pronuncia:
“Pertencer a uma minoria nacional é assunto de escolha pessoal, e esta escolha não pode resultar em danos. As pessoas pertencentes a uma minoria nacional têm o direito de expressar, de preservar e de desenvolver em plena liberdade sua identidade étnica, cultural, lingüística ou religiosa, e de manter e desenvolver sua cultura sob todas as formas, salvos de qualquer tentativa de assimilação contra sua vontade.” 
“Também de que os Estados participantes protegerão a identidade étnica, cultural, lingüística e religiosa das minorias nacionais que vivem em seu território e criarão as condições necessárias para promover esta identidade.  Eles tomarão as medidas necessárias a este respeito, após ter realizado as consultas apropriadas, e especialmente após terem entrado em contato com as organizações ou associações destas minorias, conforme os processos de decisão de cada Estado.  Estas medidas deverão ser em conformidade com os princípios de igualdade e de não-discriminação com respeito aos outros cidadãos do Estado participante em questão”.

Esperamos que a nossa intervenção nesta Conferência possa servir de instrumento para futuras reflexões sobre os direitos ciganos no Brasil, e estimular a realização de pesquisas de campo por antropólogos e outros cientistas sociais brasileiros.  Esperamos, ainda, que estes documentos ajudem também as organizações não-governamentais ciganas e pró-ciganas a definir e expressar melhor suas reivindicações, conforme o atual pensamento do movimento cigano internacional.

Até porque sabemos que os problemas enfrentados por estas organizações(ciganas) não são poucos.  Em primeiro lugar existe a enorme diversidade lingüística que torna uma efetiva comunicação nacional ou internacional entre os ciganos praticamente impossível.  Mesmo a nível nacional muitas vezes são falados vários dialetos ciganos diferentes.  Não é sem motivo que os intelectuais ciganos estão preocupados com a unificação das inúmeras línguas e dialetos ciganos, através da criação de um romani estandardizado, uma espécie de “língua geral” cigana.

Em segundo lugar há a enorme variedade de problemas, aspirações e interesses familiares, locais, regionais ou nacionais: o que uma família ou grupo, ou os ciganos de determinado país podem achar importante, pode não ter o mínimo interesse para os outros, e os problemas de um não precisam ser, e quase nunca são, também os problemas dos outros.

Acrescenta-se, em terceiro lugar, que as estruturas políticas ciganas ainda são inadequadas para um tipo de organização, que sempre significa mudanças na cultura tradicional.  As lideranças ciganas sempre foram a nível familial ou grupal e nunca tiveram uma organização política a nível regional, nacional, e menos ainda internacional. 

Finalmente queremos dizer que na Terra, no Brasil e no Estado do Rio de Janeiro há lugar para todos.  Nenhum povo tem o direito de oprimir e discriminar um outro apenas porque este é diferente e vive em diáspora contínua.  A única possibilidade para uma convivência melhor consiste no respeito recíproco de um pelo outro e, acima de tudo, pelas tradições culturais que cada povo tem o direito de conservar e desenvolver.  Este princípio está, entre outros, consignado na Declaração Universal dos Direitos Humanos
Mas, para isso, para transformar todas as reivindicações ciganas em realidade, reivindicações estas que incluem o reconhecimento de seus direitos específicos como minorias étnicas, um longo caminho ainda terá que ser percorrido.  Mas o que importa é que nós, os próprios ciganos, após séculos de silêncio e resignação, finalmente começamos  a levantar a voz, a reivindicar, a denunciar e a exigir os seus direitos.  No mundo, no Brasil, e no Rio de Janeiro. Obrigada!!

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