Primeira intervenção de Katja Bastos – Delegada Nacional da Etnia
Cigana - Mesa Redonda “Desigualdades
raciais no Rio de Janeiro”
A construção da Política Nacional de Promoção da Igualdade
Racial está baseada em diversos instrumentos, dentre os quais se destacam:
·
A Convenção Internacional sobre
Eliminação de todas as formas de Discriminação, que define a discriminação
racial como “toda exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica, que tenha como objetivo anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade
de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
econômico e social”.
·
O Brasil sem Racismo, um documento
elaborado para o programa de governo indicando a implementação de políticas de
promoção da igualdade racial nas áreas do trabalho, emprego e renda, cultura e
comunicação, educação e saúde, terras de quilombos, mulheres negras, juventude,
segurança e relações internacionais.
·
E o Plano de Ação de Durban, produto
da III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, Xenofobia
e Intolerância Correlata, no qual governos e organizações da sociedade civil,
de todas as partes do mundo, foram conclamados a elaborar medidas globais
contra o racismo, a discriminação, a intolerância e a xenofobia.
Assim sendo, é
de responsabilidade do Governo Federal, do Estadual e do Municipal, observados
os limites institucionais do Poder Executivo, desenvolver mecanismos para
assegurar a eficácia dos direitos de cidadania plena.
Sabemos que o
governo brasileiro já coloca em prática os marcos e princípios políticos de
Durban e da Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação Racial. Admite a diversidade nacional, reconhecendo a sociedade
brasileira como multicultural, multiracial e pluriétnica, buscando reafirmar ou
alterar o posicionamento do Estado brasileiro.
Por
conseqüência, o Governo reconhece,
também, a dívida histórica do Estado com os povos ciganos, no que diz respeito
à constante violação dos direitos humanos, que se manifesta na existência de
estereótipos negativos, preconceitos e nas várias formas de discriminação das
minorias ciganas pela população majoritária nacional, sem a efetividade de
políticas específicas para descendentes deste grupo.
Gostaríamos de esclarecer um pouco mais a questão
dos ciganos.
Nada, mas absolutamente nada, sabemos sobre o
número de ciganos nômades, semi-nômades e sedentários atualmente existentes no
Brasil, nem sobre sua distribuição geográfica.
Há quem, sem apresentar quaisquer provas, fala até na existência de 800
mil ou 1 milhão de ciganos no Brasil. No
entanto, quaisquer estimativas sobre a população cigana brasileira não passam
de meras fantasias. No Brasil, até hoje,
nem o IBGE ou outra instituição de pesquisa demográfica, nem cientista algum
tem feito um levantamento da população cigana.
Desde sua
chegada na Europa Ocidental, os ciganos têm sido vítimas de políticas
anti-ciganas, em todos os países por onde passaram. “Cigano” virou palavrão; ser “cigano” virou
crime, o que em muitos países significava a condenação à morte. Ainda em pleno Século XX, os nazistas
exterminaram cerca de 500.000 ciganos, um holocausto que os historiadores
preferem esquecer.
O Brasil talvez
seja o único país do mundo no qual um cigano chegou a ser Presidente da
República (Juscelino Kubitschek, 1956-60)
Mesmo assim, todas as Constituições Federais sempre ignoraram a
existência de ciganos, e no Brasil não existem políticas anti-ciganas ou
pró-ciganas, nem leis que tratam especificamente das minorias ciganas.
A defesa dos direitos e interesses das minorias ciganas, no entanto, é
bem mais difícil e complexa, porque nas bibliotecas universitários os
interessados procurarão em vão uma bibliografia nacional e estrangeira sobre
ciganos, ou sobre direitos ciganos. Os
antropólogos, historiadores, geógrafos, juristas e outros, quase sempre
ignoraram a existência das minorias ciganas no Brasil.
No Brasil não existe uma legislação especificamente cigana. No entanto, na Constituição Federal de 1988
existem alguns artigos que, por extensão, dizem respeito também às minorias
ciganas.
Direito à não-discriminação:
“Art.
3º. Constituem objetivos fundamentais da
República Federativa do Brasil:
I.
Construir uma sociedade: livre, justa e solidária;
IV.
Promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
“Art. 5º. Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País inviolabilidade do direito à
vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade...
XLII.
A prática do racismo constitui crime inafiançável
e imprescritível, sujeito a pena de reclusão, nos termos da lei.”
Direito à livre locomoção:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção
de qualquer natureza...
XV.
É livre a locomoção no território nacional em
tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar,
permanecer ou dele sair com seus bens.”
Direitos culturais:
“Art.
215. O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.
#1º -
O Estado protegerá as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes
do processo civilizatório brasileiro.
Art. 216. Constituem patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente
ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
1.
As formas de expressão;
2.
Os modos de criar, fazer e viver;
3.
As criações científicas, artísticas e
tecnológicas...
#3º -
A lei estabelecerá incentivos para a produção e o
conhecimento de bens e valores culturais.”
A Constituição Federal garante, assim, aos ciganos nascidos no Brasil
os mesmos direitos dos outros cidadãos, pelo menos em teoria. Na prática, muitos destes direitos são
constantemente violados, o que se manifesta, como já dissemos, na existência de
estereótipos negativos, preconceitos e várias formas de discriminação das
minorias ciganas pela população majoritária nacional. Porém, os ciganos, por constituírem minorias
étnicas, também têm direitos especiais, citados em vários documentos
internacionais, aprovados e promulgados também pelo Governo Brasileiro. Desnecessário dizer que também estes direitos
especiais são constantemente ignorados e violados.
A Declaração Universal dos Direitos dos Povos, de
1976, dedica uma seção ao "Direito à Cultura", na qual afirma:
"Art. 13 - Todo povo tem o direito de falar sua língua, de preservar e
desenvolver sua cultura, contribuindo assim para o enriquecimento da cultura da
humanidade. Art. 14 - Todo povo tem direito às suas riquezas artísticas,
históricas e culturais. Art. 15 - Todo
povo tem direito a que se não lhe imponha uma cultura estrangeira”.
Também a Conferência sobre a Segurança e
Cooperação na Europa, em 1990, assim se pronuncia:
“Pertencer a uma minoria nacional é assunto de
escolha pessoal, e esta escolha não pode resultar em danos. As pessoas
pertencentes a uma minoria nacional têm o direito de expressar, de preservar e
de desenvolver em plena liberdade sua identidade étnica, cultural, lingüística
ou religiosa, e de manter e desenvolver sua cultura sob todas as formas, salvos
de qualquer tentativa de assimilação contra sua vontade.”
“Também de que os Estados participantes protegerão a identidade étnica,
cultural, lingüística e religiosa das minorias nacionais que vivem em seu
território e criarão as condições necessárias para promover esta
identidade. Eles tomarão as medidas
necessárias a este respeito, após ter realizado as consultas apropriadas, e
especialmente após terem entrado em contato com as organizações ou associações
destas minorias, conforme os processos de decisão de cada Estado. Estas medidas deverão ser em conformidade com
os princípios de igualdade e de não-discriminação com respeito aos outros
cidadãos do Estado participante em questão”.
Esperamos que a nossa intervenção nesta Conferência possa servir de
instrumento para futuras reflexões sobre os direitos ciganos no Brasil, e
estimular a realização de pesquisas de campo por antropólogos e outros
cientistas sociais brasileiros.
Esperamos, ainda, que estes documentos ajudem também as organizações
não-governamentais ciganas e pró-ciganas a definir e expressar melhor suas
reivindicações, conforme o atual pensamento do movimento cigano internacional.
Até porque sabemos que os problemas enfrentados por estas
organizações(ciganas) não são poucos. Em
primeiro lugar existe a enorme diversidade lingüística que torna uma efetiva
comunicação nacional ou internacional entre os ciganos praticamente
impossível. Mesmo a nível nacional
muitas vezes são falados vários dialetos ciganos diferentes. Não é sem motivo que os intelectuais ciganos
estão preocupados com a unificação das inúmeras línguas e dialetos ciganos,
através da criação de um romani estandardizado, uma espécie de “língua geral”
cigana.
Em segundo lugar há a enorme variedade de problemas, aspirações e
interesses familiares, locais, regionais ou nacionais: o que uma família ou
grupo, ou os ciganos de determinado país podem achar importante, pode não ter o
mínimo interesse para os outros, e os problemas de um não precisam ser, e quase
nunca são, também os problemas dos outros.
Acrescenta-se, em terceiro lugar, que as estruturas políticas ciganas
ainda são inadequadas para um tipo de organização, que sempre significa
mudanças na cultura tradicional. As
lideranças ciganas sempre foram a nível familial ou grupal e nunca tiveram uma
organização política a nível regional, nacional, e menos ainda internacional.
Finalmente queremos dizer que na Terra, no Brasil e no Estado do Rio de
Janeiro há lugar para todos. Nenhum povo
tem o direito de oprimir e discriminar um outro apenas porque este é diferente
e vive em diáspora contínua. A única
possibilidade para uma convivência melhor consiste no respeito recíproco de um
pelo outro e, acima de tudo, pelas tradições culturais que cada povo tem o
direito de conservar e desenvolver. Este
princípio está, entre outros, consignado na Declaração Universal dos Direitos
Humanos
Mas, para isso, para transformar todas as reivindicações ciganas em
realidade, reivindicações estas que incluem o reconhecimento de seus direitos
específicos como minorias étnicas, um longo caminho ainda terá que ser
percorrido. Mas o que importa é que nós,
os próprios ciganos, após séculos de silêncio e resignação, finalmente
começamos a levantar a voz, a
reivindicar, a denunciar e a exigir os seus direitos. No mundo, no Brasil, e no Rio de Janeiro.
Obrigada!!
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